domingo, 30 de agosto de 2009

ETHOS OBAMANIANO: A METÁFORA DE UM VENCEDOR



ETHOS OBAMANIANO: A METÁFORA DE UM VENCEDOR
Sandra Meyre Lopes Nunes e Silva*
RESUMO: Argumenta-se, neste artigo, a construção do ethos de Barack Obama.Esse político construiu a imagem de si e ela o levou à presidência dos Estados Unidos, país que sempre se destacou devido a uma soberania inabalável. Aqui, procura-se mostrar que o ethos obamaniano foi codificado pelo povo americano, fazendo-o vitorioso à luz da ideologia neoliberal. Vivemos na era da globalização e com ela temos a universalização cultural. A partir daí, o ethos de Barack Obama passa a ser ethos obamaniano já que qualquer pessoa o verá como uma extensão de si. Assim, justifica-se o título do artigo – Ethos Obamaniano: a metáfora de um vencedor. Ethos Obamaniano é uma idéia, a realização de sonhos impossíveis – a metáfora de um vencedor que universaliza-se, a humanidade fará dessa metáfora uma ponte, acreditando na possibilidade de realizar sonhos, muitas vezes, impossíveis.
PALAVRAS-CHAVE: ethos, ideologia, metáfora, discurso dialógico.

Introdução
Este artigo discute o poder da ideologia. Quanto ela determina nossas escolhas e, mais ainda, quanto ela é responsável pelos nossos julgamentos. É importante destacar que uma ideologia nasce das relações sociais estabelecidas em cada grupo. Nosso modo de pensar, nosso discurso, portanto, nossa linguagem, tudo se costura por um viés ideológico.
Ela é colocada como ponto central já que faz parte das linguagens responsáveis por qualquer ato de comunicação. Essa comunicação se realiza a partir de um objeto material com capacidade de transformar-se em signo, por exemplo, enunciação, práticas do cotidiano, gestos, sons, cores, entre outros. Sendo assim, a construção que fazemos da imagem de um interlocutor, desmarca-se com o auxílio de conceitos sociais retidos em nossas mentes. Eles determinam, então, ações e juízo de valor do outro. Pode- se confirmar tal teoria na citação abaixo:
* Professora da Escola Estadual Roberto Rodrigues Krause – Parnamirim (RN), professora da Escola Municipal Maria Salete de Lima – Japecanga (município de São José de Mipibu), pós graduação em Língua Portuguesa pela UFRN.
Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer. Nesse sentido, a realidade do signo é totalmente objetiva e, portanto, possível de um estudo metodologicamente unitário e objetivo. Um signo é um fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as ações, reações e novos signos que ele gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior. Este é um ponto de suma importância. No entanto, por mais elementar e evidente que ele possa parecer, o estudo das ideologias ainda não tirou todas as conseqüências que dele decorreu. (BAKHTIN VOLOSHIONV, 1990, p.33)
A partir dessas imposições sociais, construímos a imagem do outro. Assim, a imagem elaborada pelo povo americano de Barack Obama foi positiva. Os americanos relacionaram a performance do candidato ao encontro da real necessidade da nação americana. Essa realidade nada mais é do que a realidade propagada pelo sistema neoliberal: um homem de um discurso e exemplos sempre competitivos e com êxitos e, ainda, pertencente a um grupo que a sociedade limita qualquer chance de oportunidade e ainda em que a maioria se orienta pelo preconceito de cor e etnias. Vencer, nesse contexto, significa fortalecer uma ideologia que não “enxerga” a falta de oportunidade, mas “enxerga” o outro como um fraco se não o consegue vencer, mas Obama venceu e, então, inseri-se no contexto dominante e mais fortalecido, pois o que o impedia, fortaleceu-o e, então, o consagraram como herói pela voz da ideologia dominante.
A imagem construída de si por Obama foi refletida e refratada pelo interlocutor, coroando-o com uma vitória. Esse ethos costurou-se por meio de oratórias, postura, experiências prévias, tom de voz etc. Esse tecido concluído metaforizou-se numa ideologia neoliberal, encontrando correspondência no homem globalizado.



Discurso dialógico – Ideologia – Signo lingüístico
É importante revisitarmos os conceitos desta tríade (discurso dialógico, ideologia e signo) – constituição de toda e qualquer linguagem – para, assim, entendermos o processo que se instala na construção de um ethos.
Já se tornou sabido que a linguagem está presente em qualquer manifestação concreta capaz de realizar comunicação. Entende-se por situação concreta, toda aquela que pode representar um sentido para o outro, tanto por meio da linguagem verbal quanto por meio da não-verbal. A existência humana explica-se devido à linguagem, assim, todos os atos realizados pelo homem, de uma simples enunciação até mesmo um olhar ou sorriso, criam-se no(s) outro(s) a materialização de um discurso dialógico.
Nos estudos bakhtinianos, pode-se compreender a importância do diálogo para o entendimento da linguagem e do processo comunicativo, pois os dois são inseparáveis. O diálogo à luz bakhtiniana é um paradigma para o estudo de uma teoria que abarca dimensões mais globais. Somente, quando se utiliza o diálogo, percebe-se a reciprocidade entre o eu e o outro. O reconhecimento do outro se dá em cada réplica, em cada enunciado quando possui a função dinâmica; a autora Renata Coelho em seu artigo assim o cita:
O enunciado de um sujeito apresenta-se de maneira acabada permitindo/provocando, como resposta, o enunciado do outro; a réplica, no entanto, é apenas relativamente acabada, parte que é de uma temporalidade mais extensa, de um diálogo social mais amplo e dinâmico (BAKHTIN apud MARCHEZAN, 2006, p.117)
Ora, o ser humano é todo linguagem, logo é natural a convocação ao diálogo, seja ele realizado por um eu somente ou por mais de um participante. Por que um diálogo com a própria pessoa? Na verdade, o eu capta nos discursos verbais, nas sensações ou em qualquer outra manifestação de linguagem e, então, relaciona-as ao universo cognitivo já estabelecido ao longo da história (experiências, ideologias, cultura, conhecimentos adquiridos) e dessa relação nasce um juízo de valor. Sendo assim, temos sempre a imagem organizada do outro (interlocutor) e representada por meio de impressões que recebemos das várias linguagens anunciadas ou das relações sociais nas quais estamos inseridos. A esse diálogo, Bakhtin nomeou de autoconsciência dialogizada. Essa expressão justifica-se na citação abaixo:
A palavra diálogo é bem entendida, no contexto bakhtiniano, como reação do eu a outro, como “reação da palavra à palavra de outrem”, como ponto de tensão entre o eu e o outro, entre círculos de valores, entre forças sociais. A essa perspectiva, interessa não a palavra passiva e solitária, mas a palavra na atuação complexa e heterogênea dos sujeitos sociais, vinculada a situações, a todas passadas e antecipadas (BAKHTIN apud MARCHEZAN, 2006 p. 123)
A imagem que o interlocutor faz do locutor é resultado de tudo aquilo que ele aprendeu como positivo ou como negativo. Isso não quer dizer que tudo o que ele diz ser positivo, seja realmente positivo nem tudo aquilo que ele acredita ser negativo, seja realmente negativo. É imperativo destacar que vivemos num mundo das aparências em que a realidade reflete-se por máscaras, então “a aparência é vista como a totalidade da realidade” (FIORIN, 1988, p.28). Tal citação confirma nossas manifestações discursivas, nossas atitudes, nossas escolhas, nossos valores e toda nossa prática na vida, que é uma prática social e realiza-se a partir de uma realidade invertida que se dá o nome de ideologia e, assim, confirma-se na citação abaixo:
A esse conjunto de idéias, a essas representações que servem para justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que ele mantém com os outros homens é o que comumente se chama ideologia. Como ela é elaborada a partir das formas fenomênicas da realidade, que ocultam a essência da ordem social, a ideologia é “falsa consciência” (FIORIN, 19988, p. 29)
Todo e qualquer sinal emitido pelos objetos do mundo sofre alteração pelo homem e transforma-se em signo e linguagem. Uma realidade material passa ser signo quando há uma mudança do significado imediato dessa realidade para outro significado e essa alteração acontece devido às relações sociais entre os homens, pois elas refletem as relações socioeconômicas, culturais, políticas e históricas, logo todo signo é ideológico. “O signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados e todo signo é ideológico”. (BAKHTIN, VOLOSHIONV, 1990, p. 15)
É nessa perspectiva: do discurso dialógico à luz da ideologia que será analisado a construção do ethos de Barack Obama. A imagem de si construída por Obama para chegar à presidência dos Estados Unidos, país referencial no mundo devido à horizontalidade da economia e que sempre ditavam culturas e possíveis soluções para outras economias mundiais, portanto todos sempre viram nesse país azul e vermelho o espelho que reflete segurança.
A via percorrida por Barack na construção de seu ethos o levou à vitória e mais do que isso, devido à cor negra e as circunstâncias econômicas que envolvem os EUA, ele não só hoje é o presidente de uma das maiores potências mundial como também esse resultado tornou-se emblemático e, portanto, universal a conotação de um homem cuja capacidade representa não só os anseios da sociedade americana como também a possibilidade da realização dos sonhos de qualquer cidadão no mundo. Nesse contexto, o ethos obamaniano passou a ser a metáfora de um vencedor, das possibilidades e das oportunidades. Há no ethos obamaniano uma plurissignificação que se desmembrou e vai ao encontro de cada cidadão em qualquer nação. Aí se encontra a metáfora que traduz a certeza de vencer mesmo quando as situações se mostram contraditórias. Não há nenhum ser humano na Terra que não viva tal situação. A globalização nos coloca sob o signo da competitividade e nos orienta no sentido de que capacidade é sempre sinônimo de vencer, ignorando qualquer outro fator que nos limita, impedindo uma possível realização. Sendo assim, a ideologia neoliberal, que se justifica no capital e no vencer sempre, reveste a metáfora do ethos obamaniano.

A construção do ethos obamaniano
Encontram-se, na Retórica de Aristóteles, dois campos semânticos ligados ao termo ethos. A primeira engloba atitude e virtudes como honestidade, benevolência ou eqüidade; a segunda reúne termos como hábitos, modos, costumes ou caráter. Essas duas concepções segundo Amossy ( 2008, p.30) são as faces necessárias a qualquer atividade argumentativa. Ethos significa a construção de imagens de si que se faz a partir da história de vida (escolhas, postura, relacionamento familiar, desempenho profissional, entre outros) ao discurso pronunciado pela pessoa e também ,por exemplo, a mídia. O sujeito a partir dessa esfera constrói a imagem de si. Cabe, então, o outro (auditório, sociedade ou grupo) codificá-la como positiva ou negativa. É importante destacar que essa imagem decifrada do locutor pelo interlocutor realiza-se pelas convicções sociais presentes no meio em que vive o sujeito (interlocutor). O ethos no discurso político fundamenta-se numa relação de contigüidade ou dizendo melhor: parecer ser para o interlocutor. Assim, confirma Charaudeau:
De fato, o ethos, enquanto imagem que se liga àquele que fala, não é uma propriedade exclusiva dele; ele é antes de tudo a imagem de que se transveste o interlocutor a partir daquele que diz. O ethos relaciona-se ao cruzamento de olhares: olhar do outro sobre aquele que fala, olhar daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro vê. Ora, para construir a imagem do sujeito que fala, esse outro se apóia ao mesmo tempo nos dados preexistentes ao discurso – o que ele sabe a priori do locutor – e nos dados trazidos pelo próprio ato de linguagem ( 2006, p. 115)
Os estudos sobre a construção do ethos começaram na Retórica de Aristóteles e atualmente vários teóricos contemporâneos estudam este processo de construção: Caharaudeau, Rollanol Maingueneaul, Amossy. Todos mostram a relação existente entre a identidade social e a identidade discursiva, pois, para eles, torna-se impossível dizer que o sucesso de um projeto argumentativo consolida-se somente devido à identidade discursiva. Sabe-se que, na verdade, a imagem de um político, por exemplo, forma-se um todo quando representada pelo discurso do locutor (aqui depende de um potencial intelectual que o capacita no trabalho com a palavra), pelo ethos prévio (a imagem preexistente do locutor), também o ethos corporalidade (forma de se apresentar, vesti-se no meio social bem como o tom de voz, entre outros ) e ainda o ethos discursivo na voz de um outro (a mídia, adversários etc.).
É nesse quadro no qual se constrói um ethos; constrói-se uma imagem sempre em busca de adesão de um público. Sabe-se, porém, que a adesão às idéias de um político só acontece quando há adesão à pessoa (CAHARAUDEAU, 2006, p. 115) A partir dessa adesão estabelecida pelo público, ele desenvolve identidades figurativas do discurso político que reagrupam em duas grandes categorias de ethos:o ethos da credibilidade e o ethos de identificação. Os ethos da credibilidade constroem-se a partir de imagens de um político sério, virtuoso ou competente. Já o ethos da identificação, as imagens construídas representam potência, caráter, inteligência, humanidade, chefe e solidariedade.
Nesse leque de potencialidades, mapea-se o ethos de Barack Obama. Em primeiro lugar apresenta-se o ethos prévio, pois, sem ele, seria impossível a vitória. Registram-se aqui os itinerários mais importantes na construção do ethos prévio de Barack, retirado do site O portal de Notícias da Globo. No Havaí, foi aluno considerado “inteligente” e estudava com uma bolsa na prestigiosa Punahou School. Amava jogar basquete e por isso foi chamado de “Barry O Bomber”. Durante seu último ano, o time da escola ganhou o campeonato estadual, Obama era considerado um competidor feroz e um amigo sensível.
Em 1985, chega a Chicago com um diploma universitário, uma mapa da cidade e um emprego – organizador de comunidade. Sabia pouco sobre o jogo duro que se fazia em Chicago. Mas o fato de ter vivido no exterior havia lhe dado experiência como estrangeiro e uma empatia natural com pessoas de poder e dinheiro, diz Gerald Kellman, o homem que o contratou e continua afirmando que ele parecia ouvir bem e aprendia rápido e quando o assunto era negociar conflitos, ele era muito bom. Em três anos como organizador, Obama se tornou cada vez mais consciente dos limites daquilo que poderia conquistar e foi ficando cada vez mais pragmático.
Seu próximo passo foi cursar outra Universidade, foi estudar em Harvard (conhecida como incubadora da elite norte-americana). Professor de direito Charles Ogletree dizia que ele não era alguém que você simplesmente queria apenas ler suas anotações ou ouvir sua voz, mas você queria ouvi-lo pensando. Barack chegou às manchetes quando foi eleito o primeiro presidente negro do Harvard Law Review, talvez a mais prestigiada publicação jurídica do país.
Com a graduação, Obama se tornou valioso para o mercado. Ofertas de altos cargos apareciam para ele, mas ele escolheu outra direção. De volta a Chicago, ele se juntou a uma pequena firma de direitos civis. Deu aula de direito constitucional na Faculdade de Direito da Universidade de Chicago. Em 1996, foi eleito para o cargo no Parlamento estadual, representando Hyde Park. Em Springfield, capital do estado, ficou conhecido pelo seu pragmatismo, trabalhando com outros democratas e com republicanos. Obama ajudou a mudar as leis sobre a pena de morte, ética, perfil racial e ganhou crédito de impostos para trabalhadores pobres. Dois anos depois, planejou seu próximo passo – uma campanha pelo Senado dos Estados Unidos. Na época, ele já tinha uma rede de amigos e gente que o apoiava em Springfield, incluindo seus companheiros de pôquer que viam semelhanças na maneira como ele abordava o trabalho e o jogo.
Um ponto importante na trajetória de Obama foi um discurso de 17 minutos, pronunciado por ele na abertura da Convenção Nacional Democrata que fez dele um astro. Sua aparição na convenção de julho foi seguida por um velho ditado da Broadway: Barack Obama subiu ao palco como desconhecido, mas saiu dele como astro. Desde então, ele tem tido o toque de Midas: dois livros Best-sellers, um Grammy por ter gravado um deles, capas de revista, aparições na TV, convites e mais convites.
Sem a apresentação dessa linha percorrida por Obama, seria difícil ou praticamente impossível chegar à presidência, pois ela significa o ethos prévio dele. Para o político, o ethos pré-construído, sendo positivo, apresenta-se como um caminho mais fácil para a adesão ao ethos discursivo que acontece no ato da enunciação. Obama, na trajetória da vida apresentada, mostra-se como aquele que possui todas as qualidades capazes de resolver os desafios da nação americana. A imagem de si (ehtos) que Barack construiu, perante a maioria dos americanos, foi tão positiva que adormeceu o paradigma do preconceito. Sabe-se que a sociedade americana, ao longo da história, cultuou valores segregatícios e, com certeza, ainda cultua.
Não constitui interesse, nesse artigo, saber se o ethos de Obama é verdadeiro ou não, mas analisar as condições ou fatores que o fizeram vencedor. É interessante lembrar que a identidade do sujeito passa por representações sociais. Essas representações existem no imaginário social a partir de valores difundidos e eles são utilizados pelo grupo social para formar a identidade do outro. Sendo assim, a imagem de si construída pelo sujeito é codificada pelo interlocutor como positiva ou negativa. Se o grupo social adere ao projeto do locutor, está aderindo a um conjunto de imagens como, por exemplo, corporal (tom, gesto, postura, vestuário), idéias por meio do discurso como também uma imagem preexistente. Assim, quando um político consegue que o interlocutor o interprete como verdadeiro, ele, então, conseguirá a vitória. Segundo Maingueneau, “As idéias são construídas por maneiras de dizer que passam por maneiras de ser” ¹ Não adianta possuir boas idéias e boas intenções, pois a maneira de dizer e o sujeito que as executa é o grande responsável pela adesão do interlocutor. As citações abaixo confirmam tal posição:
O sujeito falante não tem outra realidade além da permitida pelas representações que circulam em dado grupo social e que são configuradas como imaginários sociodiscursivos. Quando Maingueneau retoma a noção de “tom” – proposta por Barthes a partir da noção de “ares” de Aristóteles – e propõe uma concepção mais encarnda do ethos, como atributo do que ele chama fiador de um caráter e de uma corporalidade subjetiva, é ainda de representação social que se trata, uma vez que a visão que uma sociedade tem do corpo depende dos imaginários coletivos que ela constrói para si. (CAHARAUDEAU, 2006, p.117)
Não se pode separar o ethos das idéias, pois a maneira de apresentá-las tem o poder de construir imagens. Separar as idéias do ethos é sempre um álibi que impede de ver, em política, aqueles não valem senão pelo sujeito que as divulga, as exprime e as aplica (CAHARAUDEAU, id. ibid)

¹ Conferência proferida no GRAM (Groupe ae Recherche sur l’Analyse dês Médias), em 23 de novembro de 2001. Ver também os diferentes tipos de ethos definidos por Maingueneau (2002), que os classifica em: “ethos efetivo”, “ethos pré-discursivo” e “ethos discursivo”, “ethos dito” e “ethos mostrado”

Algumas considerações sobre o discurso da vitória de Barack Obama
Quando confirmada a vitória de Obama, nas urnas, dada pelos americanos, o discurso proferido por ele, em Chicago, passa pela interpretação de dois vieses: o primeiro possui o poder de legitimar um sonho que, ao longo da história, os americanos sempre lutaram: a democracia plena e; o segundo parece ser um “recado” para outras nações – a superioridade americana é legítima e inabalável.

Barack inicia o discurso com uma saudação bastante cordial “Olá, Chicago! (l.1)¹ geralmente ela se materializa em ambiente nos quais o locutor a pronuncia quando possui bastante familiaridade, aliás, ao ficar “à vontade” em determinado lugar. No caso do discurso político, essa saudação se remete à adesão que o político já sabe possuir do público. Na mesma linha “... se alguém aí ainda duvida...” , ele utiliza o pronome indefinido: alguém antecipado pela conjunção se. No caso da conjunção se, consolida-se a afirmação de algo, mas direciona uma dúvida ao interlocutor. Por exemplo, nas situações cotidianas costuma-se dizer: “Se você é forte, diga novamente”. Nesse discurso, o locutor duvida da força daquele que julga possui-la e, ainda, provoca-o a contemplar uma outra realidade como verdadeira. Nesse caso, Obama provoca o outro, o olhar do povo americano: não para o se, mas para o podemos. Não à dúvida, mas à certeza. Da mesma forma, manda esse “recado” para as outras nações: a certeza de que os EUA continuam sendo a maior potência do mundo. Na verdade, a condição para o podemos é o próprio Barack Obama.

¹ Parte do discurso de Barack Obama encontra-se no final do artigo.
O pronome indefinido alguém é uma escolha lexical feita pelo político para apresentar os dois discursos: o primeiro direcionado ao povo americano, já o segundo sentido, direcionado as outras nações. Essa escolha explica-se, pois, se ele desejasse fazer referência apenas ao povo americano, não teria usado uma palavra que pressupõe outro povo, outro discurso. Na seqüência do pronome alguém, vem um advérbio indicando lugar: “aí”. Ele apresenta um sentido de proximidade, pois o locutor está próximo àqueles para quem ele fala e também, semanticamente, nos remete ironicamente a situações, pessoas ou lugares que estão subordinados. Nesse contexto, o presidente eleito discursa para duas situações diferentes com o mesmo discurso. Esse é o poder que a linguagem possui quando utilizada por quem a conhece e sabe materializá-la a favor de uma idéia. No discurso de Barack, além da seleção lexical, existem os marcadores argumentativos e os marcadores de pressupostos que determinam outro discurso. É importante dizer que não existe ambigüidade no discurso, mas ele apresenta dois vieses. No primeiro, lê-se uma situação linearmente; no segundo, a outra situação também linearmente. Cada grupo o lê ou ouve conforme os conhecimentos prévios das situações que o direcionam à nterpretação.

O ponto alto do primeiro parágrafo do discurso de Obama é a expressão ainda. Ela vem junto de outros operadores que incitam a dúvida, ao questionamento, mas, na realidade, o presidente afirma por meio desse trabalho lingüístico um discurso da certeza e da afirmação relacionados aos Estados Unidos. Vejamos como os operadores se organizam e direcionam os significados.

Argumentação A (dúvida) Argumentação B (certeza)

Se alguém aí ainda duvida ---------------> Estados Unidos tudo é possível

Ainda se pergunta ---------------> O sonho continua vivo

Ainda questiona ---------------> A democracia é a resposta

Ou seja ----------> C discurso interpretado e concluído ----> Tudo é possível para os EUA

A democracia plena foi legitimada.


Dessa forma, o presidente eleito torna “real” o sonho daqueles que sempre lutaram pelo final das segregações: cor, etnia, homossexualismo, entre outras. Na verdade, Obama intertextualiza o discurso de Martir Luther King (Eu tenho um sonho – 28/08/1963). A mensagem do discurso de Barack é a realização do sonho de Luther King representado pela grande parcela de americanos que esperava a realização desse sonho um dia.
Na quarta linha, “esta noite é sua resposta”. Aqui a frase é construída por meio do verbo ser, indicando um estado permanente. Nesse caso, indica ausência de mudança e para reafirmar essa posição, ele a utiliza no início do segundo e terceiro parágrafos, sendo assim, reforça e confirma com segurança o fim de qualquer discriminação, segregação, sofrimento e instala-se, então, a democracia plena. Além disso, o discurso traz a mensagem de elevação da auto-estima americana, a soberania desse povo é resgatada já que havia sido abalada pela crise econômica, mas como disse Obama: “somos e sempre seremos os EUA da América” (l.15). O discurso de Luther King amplia-se no discurso de Barack, pois se estende a toda e qualquer americano que via na crise econômica a possibilidade de não ser mais referência mundial. O povo americano sempre viveu a cultura da soberania, essa é uma condição americana. O discurso do presidente respondeu ao povo americano: “Americanos que transmitiram ao mundo a mensagem de que nunca fomos simplesmente um conjunto de indivíduos ou um conjunto de Estados vermelhos e Estados azuis” (ls. 12, 13 e 14). Aqui, ele reafirma o poder dos EUA e, ao mesmo tempo, pressupõe outro discurso: se os EUA não são um conjunto de indivíduos é porque existem outras nações que o são. Essa é a resposta ao mundo: “Somos, e sempre seremos, os EUA da América” (l.15) , ou seja, nada os abalará.
O discurso de Barack compara-se a uma moeda com duas faces. De um lado, a resolução das injustiças, do preconceito, enfim, dos desvios causados por um sistema capitalista que impõe regras e que separa, tornando impossível o alargamento das oportunidades; do outro lado, o discurso materializa-se na certeza da legitimidade da maior potência econômica mundial que se insere nesse sistema. Parece contradição querer resolver os problemas causados pelo sistema fortalecendo-o. Sabe-se que a âncora do sistema neoliberal é o consumismo, logo só se pode consumir, evitando qualquer crise econômica e, em seu lugar, dando oportunidade a “todos” para que possam consumir. Assim, uma das faces do discurso de Barack esconde-se a metáfora neoliberal já que a maioria não negra do povo americano elegeu não um “negro”, mas um ethos, ou seja, a imagem de um homem que se construiu sob o signo da credibilidade e da identificação. Um homem que será capaz, segundo o povo americano, de resolver e elevar a nação americana à permanência do poder. Segundo Caharaudeau, o ethos da credibilidade se constrói da seguinte forma;
A exemplo da legitimidade, a credibilidade não é uma qualidade ligada à identidade social do sujeito. Ela é, ao contrário, o resultado da construção de uma identidade discursiva pelo sujeito falante, realizada de tal modo que os outros sejam conduzidos julgá-lo digno de crédito. (2006, p.119)
E ainda declara quanto ao ethos de identificação:
Afirmamos que o ethos político é resultado de uma alquimia complexa feita de traços pessoais de caráter, de corporalidade, de comportamentos, de declarações verbais, tudo relacionado às expectativas vagas dos cidadãos, por meio de imaginários que atribuem valores positivos e negativos a essas maneiras de ser. (op. cit, p.137)
É importante perceber, então, que a vitória de Barack Obama foi resultado do ethos, ou seja, da imagem de si construída por ele ao longo de sua história. A imagem se si de Barack encontrou adesão das muitas vozes americanas e elas representam as vozes sociais, econômicas, ecológicas, das pazes, das injustiças e do poder. Como disse Obama no seu discurso: ... “suas vozes poderiam fazer diferença” (l.8). Isso significa que todos esses grupos aderiram ao discurso do presidente eleito. Todos interpretam a imagem construída de si de Obama de maneira positiva e identificaram-no como sério, inteligente, competente, humano e o elegeram à luz do ethos de “chefe” que significa, segundo Caharaudeau, uma construção de si para doar ao outro. Na política, esse ethos se realiza na crença que o cidadão acredita existir naquele que ele o elegeu tal capacidade. Nesse caso, deve haver uma reciprocidade entre instância política e instância cidadã.
Ethos político tomado nessa relação de reciprocidade orienta mais diretamente o espelho ora para o sujeito político, ora para o sujeito cidadão. É por isso que certas figuras são ambivalentes. Por exemplos, a honestidade é uma figura voltada para o sujeito político, que oferece dele mesmo a imagem de um ser moral, correto e sincero, mas ela é igualmente voltada para o cidadão, na medida em que o político recebe seu mandado dele, e lhe deve essa honestidade em contrapartida. Mas pode-se considerar que o ethos do chefe requer propriedades que destacam essa relação de dependência, como uma imagem que é explicitamente oferecida ao cidadão. A figura do guia supremo é uma necessidade para a permanência de um grupo social. (CAHARAUDEAU, 2006. p.154)

É como se consciente de sua incapacidade de se determinar e de ver qual é seu destino, o grupo tivesse necessidade de ressuscitar a existência de um ser superior capaz de guiá-lo em meios aos casos do tempo, à fortuna da vida e às peripécias do mundo. Esse guia pode ser originário do grupo ou exterior a ele. No primeiro caso, ele é feito de carne e osso, mas com qualidade que fazem dele um ser fora do comum, um herói. (Caharaudeau, op. cit.)
Quando há adesão do sujeito pelo grupo social, o outro pode ou não idealizar uma imagem. No caso de Obama, sua imagem foi relacionada a um herói que poderá solucionar os desafios que a nação enfrenta. É importante notar que as expressões “... é sua resposta”. (l.4) e “É a resposta...” iniciando o segundo e o terceiro parágrafos reforçam essa idéia. Aí, está a reciprocidade. De um lado Barack diz que a resposta está no povo e o povo diz que está nele. Na verdade, essa expressão é polifônica, pois direciona três vozes: a primeira fala de um amadurecimento de uma nação que escolheu um representante considerado mais capacitado para resolver os problemas da nação; a segunda, fala do presidente que se considera a resposta para os anseios americanos e a terceira, fala do povo, realmente, junto ao presidente irá governar a nação, aliás, é o exercício pleno da cidadania e da democracia. Mas é bom lembrar que, ao eleger um candidato, na democracia, o povo transfere o poder para ele que irá representá-lo. Interessante refletir este parágrafo do presidente:
“Mas, sempre serei sincero com vocês sobre os desafios que nos afrontam. Ouvirei vocês, principalmente quando discordarmos. E, sobretudo, pedirei a vocês que participem do trabalho de reconstruir esta nação, da única forma como foi feita nos EUA durante 221 anos, bloco por bloco, tijolo por tijolo, mão calejada por mão calejada”.< (http: //notícias.terra.com.br/mundo/eleiçõesnoseua2008/interna/0,,0I3308376.EI10986,00html) > Acesso: 17/11/2008
Essa passagem apresenta uma estratégia política que permite maior adesão ao político. E ainda reproduz uma ideologia dominante: todos aqueles que trabalham sem cansar conseguem vencer, logo quem não conseguiu vencer foi somente quem não trabalhou. É interessante notar que a seleção lexical: bloco, tijolo, mão calejada remete ao sentido de ruína, construção e também de um desafio grande com tempo longo. Nisso Obama, com certeza, fala verdadeiramente, mas fala por meio de subentendidos.
No discurso do presidente destacam-se duas palavras: resposta e podemos. Elas se repetem, pois direcionam uma certeza e a afirmação do ideal americano. É interessante notar que a primeira se repete ao longo dos primeiros parágrafos e a segunda ao longo dos últimos parágrafos. É a resposta do sonho dos que lutaram por liberdade, democracia, paz, mas também é a resposta para o mundo: podemos.

Considerações finais
Este artigo construiu-se a partir das explicações sobre linguagem, signo lingüístico e ideologia, pois se sabe que qualquer palavra pronunciada ou discurso reveste-se de uma ideologia. No caso do discurso de Obama, ela foi imperativa na construção de seu ethos. A imagem construída conseguiu adesão positiva do público e até contrariou as regras do esperado.
Quando o outro adere à imagem do sujeito, ele tanto o faz conscientemente quanto o faz idealizando. O líder americano não só conseguiu adesão dos americanos mas também do mundo. Neste caso, o ethos obamaniano passou a ser a metáfora de um vencedor capaz de realizar sonhos. Assim, no mundo, pessoas desejam ser um “Obama”; desejam realizar os sonhos; desejam ser um vencedor.
Aqui a intenção não foi analisar a capacidade de Obama ou a ausência dela, mas a ideologia presente no seu discurso bem como a construção de sua imagem e a transformação dela em metáfora.


Bibliografia
AMOSSY, R(org). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Trd. Dilson Ferreira da Cruz, Fabiana Komesu e Sério Possenti. São Paulo: contexto, 2008 – 1ª Ed.
BAKHTIN, M. VOLOCHINOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem. Trd. Michel Lahud e Yara F. Viera. 6ª ed. São Paulo: Hucitec, 1990. PP. 11-47
CAHARAUDEAU, Patrick. O ethos, uma estratégia do discurso político. In: ________ Discurso político. São Paulo: contexto; 2006. p. 113-166
FIORIM, J.L. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 1983
MARCHEZAN, R.C – Diálogo. In. Bakhtin: outros conceitos – chave. BRAIT, B. (org). São Paulo: Concexto, 2006, PP. 115-131
Discurso de Martin Luther King – Eu tenho um sonho (28/08/1963). Disponível em: Acesso em: 17/11/2008


Discurso da vitória de Barack Obama
1 Olá, Chicago! Se alguém aí ainda duvida de que os Estados Unidos são um lugar
2 onde tudo é possível, que ainda se pergunta se o sonho de nossos fundadores
3 continua vivo em nossos tempos, que ainda questiona a força de nossa democracia
4 esta noite é a sua resposta.

5 É a resposta dada pelas filas que se estenderam ao redor de escolas e igrejas em um
6 número como esta nação jamais viu, pelas pessoas que esperaram três ou quatro horas
7 muitas delas pela primeira vez em suas vidas, porque achavam que desta vez tinha
8 que ser diferente e que suas vozes poderiam fazer diferença.

9 É a resposta pronunciada por jovens e idosos, ricos e pobres, democratas e
10 republicanos, negros, brancos, hispânicos, indígenas, homossexuais, heterossexuais,
11 incapacitados ou não incapacitados.

12 Americanos que transmitiram ao mundo a mensagem de que nunca fomos
13 simplesmente um conjunto de indivíduos ou um conjunto de Estados vermelhos e
14 Estados azuis.

15 Somos, e sempre seremos, os EUA da América. É a resposta que conduziu aqueles
16 que durante tanto tempo foram aconselhados por tantos a serem céticos temerosos e
17 duvidosos sobre o que podemos conseguir para colocar as mãos no arco da História e
18 torcê-lo mais uma vez em direção à esperança de um dia melhor.
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140 Quando havia desespero e uma depressão ao longo do país, ela viu como uma nação
141 conquistou o próprio medo com uma nova proposta, novos empregos e um novo
142 sentido de propósitos comuns. Podemos.

143 Quando as bombas caíram sobre nosso porto e a tirania ameaçou ao mundo, ela
144 estava ali para testemunhar como uma geração respondeu com grandeza e a
145 democracia foi salva. Podemos.

146 Ela estava lá pelos ônibus de Montgomery, pelas mangueiras de irrigação em
147 Birmingham, por uma ponte em Selma e por um pregador de Atlanta que disse a
148 um povo: “Superaremos”.

149 O homem chegou à lua, um muro caiu em Berlim e um mundo se interligou
150 através de nossa ciência e imaginação.E este ano, nestas eleições, ela tocou
151 uma tela com o dedo e votou, porque após 106 anos nos EUA, durante
152 os melhores e piores tempos, ela sabe como os EUA podem mudar. Podemos.

153 EUA avançamos muito. Vimos muito. Mas há muito mais por fazer.

154 Portanto, esta noite vamos nos perguntar se nossos filhos viverão para
155 ver o próximo século, se minhas terão tanta sorte para viver tanto tempo
156 quanto Ann Nixon Cooper, que mudança virá? Que progresso faremos?

157 Esta é nossa oportunidade de responder esta chamada. Este é nosso momento
158 Esta é nossa vez.

159 Para dar emprego a nosso povo e abrir as portas da oportunidade para nossas
160 crianças, para restaurar a prosperidade e fomentar a causa da paz, para
161 recuperar o sonho americano e reafirmar esta verdade fundamental,
162 que , de muitos, somos um, que enquanto respiramos, temos esperança.

163 E quando nos encontrarmos com o ceticismo e as dúvidas, e com aqueles
164 que nos dizem que não podemos, responderemos com esta crença eterna
165 que resume o espírito de um povo: Podemos.

166 Obrigado. Que Deus abençoe. E que Deus abençoe os EUA da América.
(http://notícias.terra.com.br/mundo/eleiçõesnoseua2008/interna/0,,0I3308376.EI10986,00html) > Acesso: 17/11/2008






2 comentários:

Anônimo disse...

Sandra,
achei o seu artigo muito bom. Bastante inovador e original. Foi muito interessante também a análise do discurso.
Parabéns.
Suzana

Anônimo disse...

Sandra, excelente artigo. Parabéns!